Por Rodolfo Capler
O crescimento evangélico no Brasil perdeu fôlego. Dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo IBGE, mostram que os evangélicos representam 26,9% da população brasileira
Na direção oposta, os católicos enfrentam sua maior queda histórica: passaram de 64,6% da população em 2010 para 52,2% em 2022 — uma retração de mais de 8 pontos percentuais. O número de pessoas sem religião também cresceu, alcançando 8,8%. Já religiões de matriz africana, espíritas e outras confissões mantiveram estabilidade ou apresentaram variações marginais.
Uma leitura metodológica e pastoral
Para Kleber Fernandes Danelon, pároco da Paróquia Imaculada Conceição, em Santa Bárbara d’Oeste (SP), o recuo do catolicismo está ligado a fatores metodológicos e pastorais. “A própria designação ‘evangélicos’ é muito genérica, pois inclui uma vasta gama de denominações, cujos percentuais precisam ser melhor apresentados, por respeito à identidade de cada uma dessas comunidades cristãs ou seitas. Isso permitiria uma melhor compreensão da realidade”, avalia.
Ele ressalta que a diminuição de católicos vai além da concorrência religiosa. “Segundo nossa experiência pastoral, muitas vezes a pessoa que sai de nossa Igreja não o faz pelo que os grupos não católicos creem, mas pelo modo como vivem. Não por razões doutrinais, mas vivenciais”, afirma, citando o Documento de Aparecida.
Danelon, mestre em Teologia Litúrgica pela Pontifícia Universidade Católica de Roma, acredita ainda que, embora a perda tenha sido expressiva, a proposta de uma “Igreja em saída”, incentivada pelo Papa Francisco, pode ter contribuído para conter uma queda ainda maior. “O dado do IBGE não reflete necessariamente um esvaziamento das igrejas, mas talvez o afastamento de quem já não mantinha vínculo efetivo. Há diferença entre identidade religiosa declarada e pertença real.”
Política, mídia e a freada evangélica
O pastor batista e pesquisador Sérgio Dusilek, mestre e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), vê na politização do campo religioso um dos fatores que explicam a estagnação evangélica. “A associação de lideranças evangélicas ao bolsonarismo pode ter gerado desgaste e afastamento, especialmente entre os mais críticos. Há um cansaço, um ‘efeito Malafaia’, que precisa ser considerado na curva que antes era ascendente”, pondera.
Dusilek também questiona aspectos técnicos do levantamento. “A classificação se dá por autodeclaração? Isso pode gerar distorções a partir do trânsito religioso, bem como da assunção de uma identidade que não foi institucionalmente formalizada.”
Preocupações semelhantes foram levantadas pelo antropólogo Juliano Spyer, em coluna publicada na Folha de S.Paulo, em 9 de junho de 2025. Segundo ele, a ausência de dados por denominação no Censo 2022 enfraquece a análise sobre o crescimento ou retração de diferentes segmentos evangélicos. “No Censo de 2010, o IBGE detalhou as declarações dos evangélicos em blocos como igrejas de missão, pentecostais e não determinadas. Já em 2022, limitou-se aos grandes blocos por conta da suposta inconsistência nas respostas”, observou.
Spyer questiona a justificativa técnica apresentada pelo IBGE — de que as respostas não foram “tão completas” quanto nos censos anteriores — e levanta uma hipótese grave: “Três interlocutores me relataram, com base em conversas com funcionários do IBGE, que teria havido um erro técnico na coleta de dados. Essa falha teria inflado os números de uma das denominações, comprometendo os dados das demais.”
Segundo ele, a falta de detalhamento dificulta a medição do real peso político das grandes igrejas e o avanço de pequenas denominações independentes — um fenômeno já apontado como relevante por estudos do Ipea. “Admitir um erro técnico na gestão anterior pode fortalecer o debate público e reafirmar a importância do IBGE para o país”, conclui Spyer.
Religiões afro e indicadores sociais
Dusilek também chama atenção para o avanço das religiões de matriz africana, que passaram de 0,3% para 1% da população. “Impressiona o desempenho educacional desse grupo. Tem uma taxa de analfabetismo de apenas 2,4%, contra 5,4% entre os evangélicos, e 25,5% de formação superior — quase o dobro do índice evangélico. Isso pode indicar maior preparo de suas lideranças e adesão crescente da classe média.”
Esse contraste, segundo ele, pode estar relacionado a mudanças internas no campo evangélico. “Será que o abandono da Escola Bíblica Dominical explicaria certo analfabetismo bíblico que permite adesão a proposições anti-evangélicas? Como, por exemplo, o apoio ao armamento e a prática da ‘arminha’ nos cultos?”, questiona.
A nova paisagem religiosa
Para Humberto Ramos de Oliveira Jr., doutor em Sociologia pela UFSCar e coordenador do projeto Otros Cruces Brasil, o cenário atual aponta para uma recomposição complexa da fé no país. “Existe uma bolha político-midiática em torno do campo evangélico que pode ampliar a percepção sobre seu tamanho, mas ela não representa a totalidade do grupo. O que temos é um fenômeno que combina pragmatismo religioso, busca por pertencimento e estratégias bem articuladas de presença pública.”
Humberto alerta para os riscos da politização excessiva. “Há uma linha tênue entre influência e captura institucional. E essa tensão já provoca reações críticas, especialmente entre os mais jovens e nas franjas progressistas do meio evangélico.”
Fé sem igreja?
O crescimento dos “sem religião” também se destaca. Para o padre Danelon, esse grupo é diverso e não pode ser reduzido a ateus ou indiferentes. “O alto percentual dos que se declaram ‘sem religião’ interpela todas as tradições. Muitos não assumem vínculos institucionais, mas mantêm práticas espirituais. Trata-se de um fenômeno de privatização da fé, típico de um mundo hiperconectado e individualista”, afirma.
Segundo ele, a resposta pastoral não pode ser dogmática nem indiferente. “É missão das igrejas interpretar melhor esses dados e compreender a realidade dos que se declaram ‘sem religião’. O desafio é oferecer caminhos de acolhimento e diálogo para quem busca espiritualidade sem necessariamente abraçar uma instituição.”
Rumos da religiosidade
Embora o número absoluto de evangélicos tenha crescido, a desaceleração do avanço surpreende e reabre o debate sobre os limites do fenômeno religioso mais dinâmico das últimas décadas no Brasil. A associação política de parte das lideranças, o esgotamento de certos formatos institucionais e a ausência de dados detalhados no Censo 2022 dificultam uma análise mais fina das tendências internas desse grupo, cada vez mais diverso. O recuo católico, por sua vez, mantém trajetória descendente, ainda que com sinais de reorganização pastoral em segmentos que tentam responder à perda de vínculo e ao avanço da secularização.
O cenário aponta para uma reconfiguração mais fragmentada do campo religioso, marcada por trânsito entre crenças, novas formas de espiritualidade e o crescimento do contingente que se identifica como “sem religião” — um grupo que, apesar do nome, não é necessariamente indiferente à fé. O dado censitário, ainda que imperfeito, reforça a percepção de que o pertencimento religioso no Brasil deixou de ser estático, passando a refletir escolhas mais subjetivas, por vezes transitórias, moldadas por experiências pessoais, contextos políticos e a visibilidade pública das religiões. Em um país que já foi considerado o maior bastião católico do mundo, a fé segue presente — mas cada vez menos previsível.